Para reflexão: alimentos em tempos de pandemia

Organizado por Zilma Peixer e Cleber Bosetti – 04/07/2020

Não há normalidade à qual voltar quando aquilo que tínhamos normalizado ontem, nos trouxe aonde estamos hoje.”  – Angel Luis Lara (2020).

Dezembro de 2019, último mês do ano, dava a impressão que estávamos chegando ao final de um ano difícil, principalmente para o Brasil. Com fortes políticas de retrocesso social, cortes de verbas para a educação, cortes de verbas para a área da saúde pública, restrição de proteção ao trabalhador, aumento da violência, tragédias ambientais e tantos outros vetores e articuladores das narrativas de crise. O ano de 2019 estava finalizando, mas esse final de ano não seria tão tranquilo assim, logo teve um marcador trágico e avassalador. Em dezembro começam os casos de COVID-19, uma nova doença causada pelo Coronavírus SARS-CoV-2. Rapidamente se alastra pelo mundo e em 30 de janeiro de 2020 foi considerada situação de Emergência de Saúde Pública de importância internacional e em 11 de março 2020 foi considerado Pandemia pela OMS (OPAS/OMS, 2020). Bom lembrar que o conceito de Pandemia da OMS diz respeito à abrangência da doença (no caso epidemia), não somente a sua gravidade ou taxa de letalidade.

Três meses depois dos primeiros registros , março 2020, a abrangência do novo coronavírus já se faz sentir em praticamente todos os lugares humanos e como se fosse ironia do destino agora chegou a vez do homo sapiens procurar abrigos e formas de se defender. Muitas explicações, muitas interpretações e narrativas têm sido feitas, buscando entender e dar sentido ao momento vivenciado. Uma das mais impactantes mostram semelhança com a própria ação humana sobre a natureza. Em grande parte do processo de hegemonia do homo sapiens no planeta ele se pensa como a força motriz, dominador e subjugador da natureza, sendo a sua ação um dos motivo de extermínio e morte de outras espécies vivas, nesse dois últimos séculos. E agora? o ser humano se vê rapidamente frente a morte (não sendo ele o vetor direto) e nesse momento o papel se inverte, de sujeito para sujeitado. Quem agora está correndo em busca de um local “protegido” e sem saber como será o mundo quando dela puder sair é o próprio ser humano. Nessa parada forçada, que não é a primeira1, mas que em alcance no planeta é significativa, muitas incertezas, dúvidas, medo e tantos outros sentimentos, perspectivas e ações afloram.

Números de infectados, mortes, formas de contágio, as perdas familiares, enterros sem despedidas e tantos outro relatos e dados estatísticos são diários nos noticiários, agregados e intensificados por desemprego, suspensão de salários, parada da produção e nos piores cenários, o total despreparo dos sistemas de governo. Como será o mundo pós pandemia? pergunta sem resposta, mas importante para construir os caminhos durante e pós pandemia.

Múltiplas questões, além da possibilidade da morte, se fazem presentes: desde dimensões temerárias e de alto custo para os grupos sociais como desemprego, queda na produção, diminuição do uso de insumos, queda do preço do petróleo, rompimento da rotina de trabalho, de vida, de educação, aumento da fome, abastecimento, violência de gênero; lideranças ineficazes, ruptura do convívio social convencional e marcado pelo tempo/trabalho/dinheiro. Como também dimensões desejáveis: diminuição da poluição ambiental, tempo liberado para o convívio familiar, tempo para desenvolver outras habilidades individuais, desenvolver a empatia, tempo para pensar outras possibilidades de viver. Como destaca Boaventura Santos, vivíamos na crença de que não havia alternativa nenhuma a sociedade hipercapitalista e sua forma de estruturar o cotidiano e agora essas alternativas voltam as narrativas sociais: “Como foram expulsas do sistema político, as alternativas irão entrar cada vez mais frequentemente na vida dos cidadãos pela porta dos fundos das crises pandêmicas, dos desastres ambientais e dos colapsos financeiros” (2020;6).

Bom lembrar que cada uma dessas questões são vivenciadas de formas diferentes pelos grupos sociais, ainda mais em sociedades altamente desiguais como o Brasil. Para exemplificar essa diferença é só pensar em como cada grupo social consegue seguir a recomendação da Organização Mundial da Saúde de lavar as mãos com água e sabão de forma frequente ou respeitar distanciamento físico quando moram em locais de alta densidade, como os bairros periféricos e favelas onde o sistema de acesso a água é precário, ou em situações de confinamento como sistema prisionais ou os campos de refugiados.

Muitas dessas situações de precariedade já são vivenciadas por parte considerável da população, mas que agora se agravam, se intensificam. Entre essas situações de precariedade vamos olhar com mais atenção para a questão do acesso à comida.

A alimentação é elemento essencial da manutenção da vida e ponto angular na estruturação das sociedades. Historicamente cada formação social desenvolveu estratégias para garantir a comida na mesa e recentemente ela é incorporada no rol dos direitos humanos que cada Estado, na acepção moderna, deve garantir para sua população (artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948). Essa garantia é incorporada à Constituição do Brasil no seu artigo 6, como Direito Social2. O reconhecimento desse direito por si só não garante o acesso à alimentação adequada e em quantidade suficiente para as pessoas, mas estabelece bases para negociação e delimitação do papel e responsabilidade dos Estados. No último relatório da FAO/FSIN sobre o estado alimentar no mundo, registra que em 2019, um total de 135 milhões de pessoas estavam em situação de fome extrema, no que eles classificam como Fase 3, e 183 milhões se encontram na fase 2, ou seja, em situação de vulnerabilidade alimentar, que poderão rapidamente se encontrar também em situação de fome extrema3 (FAO/FSIN, 2020). Lembrando que esses dados estão inseridos no contexto de mais de 820 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar (ONU/FAO, 2020). O primeiro documento da FAO, destaca três processos como vetores dessa situação: conflitos/guerras, alterações climáticas e processos econômicos. Já o segundo documento ressalta o agravamento da situação de fome no mundo em decorrência da pandemia. É nesse contexto que focamos na questão alimentar (produção/distribuição/consumo).

São muitas as perguntas já formuladas e outras tantas que ainda estão sendo elaboradas. Como fica a produção e comercialização de alimentos frente à pandemia? Iremos passar por momentos de escassez? Qual o impacto na área rural e na produção de alimentos? Como lidar com esse período? como sairemos dessa experiência? Não há respostas prontas, mas indicadores e ações que nos ajudam a buscar e construir o caminho durante e pós pandemia.

Configurações do modelo social:

  1. Modelo técnico/produtivo/comercial agrário alimentar que tem se tornado hegemônico, pautado na agricultura industrial com ênfase na simplificação, no monocultivo e uso intensivo de agrotóxicos. E que no Brasil articula-se com uma estrutura fundiária concentrada (latifúndios), com repercussão na estrutura política do país.
  2. Restrição da variabilidade alimentar: ênfase na produção de grãos e em dietas baseadas em produtos alimentícios (ultraprocessados);
  3. Monopólios e oligopólios no sistema de produção / distribuição.
  4. Efeitos das alterações climáticas;
  5. Perda da biosociodiversidade.

Sempre é bom lembrar Josué de Castro, que nas décadas de 40 e 50 do século XX em suas pesquisas e atividades demonstrou que a fome existente no mundo não é questão de quantidade de alimentos produzidos, mas sim das formas como são produzidos e distribuídos, ou seja é fato eminentemente sociopolítico (CASTRO,1984). De acordo com a FAO o mundo não vive de forma imediata um problema com o sistema de produção alimentar, principalmente na área de produção, mas ao mesmo tempo, prevê que irá aumentar o número de pessoas que estarão em situação de fome. Por que? Segundo a FAO alguns fatores estão sendo observados nas respostas a pandemia que demandam preocupações:

  • Restrições à comercialização de gêneros alimentícios, entre países. Na agricultura globalizada muito da produção agrária é centralizada, com países se especializando em determinado cultivo, criando interdependência mundial. Com a pandemia alguns países estão impondo taxas de reserva para exportação, com medidas restritivas (em tese estão garantindo a segurança alimentar interna), o que pode levar a escassez e aumento do preço dos alimentos.
  • Com o fechamento de fronteiras entre os países as dificuldades para o trânsito de trabalhadores em áreas agrícolas. Aqui uma das preocupação volta-se para os países que dependem de trabalhadores temporários (migrantes) nas atividades agrárias.
  • Dificuldades de comercialização de forma generalizada.

A essas questões podemos acrescentar a questão da produção de alimentos pela agricultura familiar, principalmente quando observamos o perfil demográfico de envelhecimento das unidades de agricultura familiar no Brasil. E todos os indicadores mostram que a maior taxa de letalidade do COVID-19 são para as pessoas acima de 60 anos. Qual será a repercussão nesse aspecto nas áreas rurais e nas unidades de agricultura familiar?

Considerando os aspectos acima a FAO está promovendo conferências virtuais, entre elas: Serie COVID-19 y sistemas alimentários, para acompanhar a situação em cada país e concatenar ações, na medida do possível. Na perspectiva de mitigação dos efeitos da pandemia no sistema de produção e distribuição de alimentos a FAO recomenda:

  1. Expandir e melhorar sistemas emergenciais de ajuda alimentar e outros programas de proteção social; Desenvolver programas de apoio econômico para que as pessoas possam permanecer em quarentena. Aqui retoma-se a discussão sobre renda cidadã;
  2. Proteger a Agricultura familiar, garantindo a produção alimentar; Desenvolver políticas e estratégias de produção e comercialização, aqui destaque para o comércio utilizando tecnologias informacionais, como redes/cestas de produtos da agricultura familiar.
  3. Desenvolver estratégias para garantir a cadeia de produção alimentar. Recomendação para que os países não estabeleçam restrições ou barreiras de isolamento.
  4. Garantir as redes de comércio mundial, evitando taxas ou barreiras alfandegárias.
  5. Administrar os contextos econômicos, evitando aumento dos preços dos alimentos, inflação. Centrar esforços para manter os sistemas de distribuição e cooperação internacional.

Todas essas recomendações podem ser acessadas nos documentos e materiais audiovisuais disponibilizados no site da FAO ou da ONU no Brasil.

Interessante observar que algumas dessas recomendações já deveriam ser padrões nas políticas públicas, principalmente na proteção da agricultura familiar, locus principal da produção de alimentos no mundo e a garantia de renda mínima, básico para garantir direito à alimentação. Mas além de medidas emergenciais, as fraturas do sistema produtivo agrário alimentar apontam para a necessidade de mudanças. A FAO, em consonância com a demanda de diversos movimentos agroecológicos e de consumidores, repercute a necessidade de que os países desenvolvam Sistemas Alimentares Sustentáveis, que apontam para reconversão do modelo de produção agrária/industrial, para produção com baixo impacto ambiental, com vistas à segurança alimentar e nutricional, basilar para vida saudável e em consonância com o princípio de sustentabilidade presente e futura4.

Nesse sentido diversos aspectos já existentes apontam para os caminhos que devem ser fortalecidos, os quais citamos alguns:

  • Sistemas agroecológicos de produção alimentar;
  • Valorização, reconhecimento da agricultura familiar;
  • Identificação, valorização e proteção da sociobiodiversidade;
  • Diversificação da dieta alimentar, aqui uma ótima sugestão é o preconizado pelo guia alimentar do Brasil;
  • Incentivo ao consumo de alimentos in natura ou minimamente processados;
  • Incentivo aos circuitos curtos de comercialização; valorização das feiras de agricultores; redes de cestas alimentares; sistemas de legislação específicos para a produção alimentar; valorização de produtos territoriais;
  • Valorização da produção alimentar territorializada, ou seja, agricultura urbana e periurbana.

Há um percurso difícil pela frente e um belo desafio para o ser humano. O momento que vivenciamos por um lado desnuda os contextos de vida, mostra com nitidez a desigualdade existente, a fragilidade da vida humana. A incerteza apresenta-se como a única certeza e lembrando Boaventura Santos (2020), sobre o que o vírus pode nos ensinar, além da fragilidade da vida, a plasticidade da sociedade que explicita a transitoriedade dos padrões e estruturas sociais, sendo possível a constituição de um outro mundo social, caso tenhamos a capacidade de sair vivos.

Notas:

1 – Por exemplo há que se lembrar das diversas epidemias vivenciadas pelas sociedades nativas da América com a chegada dos Europeus, e posteriormente diversas outras doenças que se tornaram epidemias, como febre amarela, varíola, influenza, meningite, H1N1, entre outras.
2 – “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015). Constituição Federal Brasil.
3 – “Around 183 million people in 47 countries were classified in Stressed (IPC/CH Phase 2) conditions, at risk of slipping into Crisis or worse (IPC/CH Phase 3 or above) if confronted by an additional shock or stressor” (FAO/FSIN, 2020).
4 – Aspecto mencionado pelo Prof. Sérgio Schneider na Aula Pública “Alimentação e saúde, agricultura e nutrição“. Luciana Dias de Oliveira e Sergio Schneider. ADUFRGS, 22/04/2020.

Referências

ADUFRGS. Aula Pública: Alimentação e saúde, agricultura e nutrição. Luciana Dias de Oliveira e Sergio Schneider. ADUFRGS. 22/04/2020.
ALTIERI, Miguel; NICHOLLS  Clara Inés. A agroecologia nos tempos do COVID-19. Série Pensar la pandemia. In: CLACSO, 2020.
CASTRO, Josué. Geografia da fome – O dilema brasileiro: pão ou aço.  Edições Antares: Rio de Janeiro, 1984.
FAO. Conferencias Virtuales: Serie COVID-19 y sistemas alimentarios. FAO, 2020.
FAO. El Covid-19 y su impacto sobre la agricultura y la alimentacion em America Latina y el Caribe. Serie COVID-19 y Sistemas Alimentarios, 2020
FAO/FSIN. 2020 Global Report on Food Crisis: Joint Analysis for Better Decisions. FAO/FSIN, 2020.
LABORDE, David. Food Export Restrictions during the Covid-19 crisis. International Food Policy Research Institute, 2020.
LARA, Angel L. Biopolítica de uma catástrofe assinalada. In: Outras Palavras, 08/04/2020.
ONU. Global Report on Food Crises reveals scope of food crises as COVID-19 poses new risks to vulnerable countries. Annual report on acute food insecurity and malnutrition, 2020.
ONU/FAO. The Impact of COVID-19 on Food Security and Nutrition. Policy brief, June/2020.
OPAS/OMS. Folha informativa: COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). Abri/2020.
SANTOS, Boaventura S. A cruel pedagogia do vírus. Coleção Pandemia Capital. Boitempo editorial, 2020.
SILVEIRA, Evanildo da. Epidemias brasileiras e a prática de dizimar os povos. In: Outras Palavras, 26/03/2020.