Crônica: “Pare o mundo que eu quero descer!?”
Por Cleber José Bosetti – 24/04/2020
A situação de pandemia, como ocorre atualmente com o caso da COVID-19, coloca-nos diante de uma questão fundamental enquanto entes pensantes: a relação vida/morte. Ainda que tenhamos consciência da morte como um fenômeno natural, isto é, como parte constituinte da vida, hodiernamente procuramos não pensar nela para, justamente para “poder viver”... A situação de pandemia, em termos materiais e discursivos, coloca a morte em evidência no sentido de lembrar-nos da sua existência. Isso vale não só para aqueles que a vivenciaram de modo particular com seus círculos familiares e de amigos, mas de toda a coletividade.
A vida pode ser entendida como uma locomotiva em movimento que realiza determinado percurso e encerra-se, justamente, para poder gerar nova vida. “Viver de morte e morrer de vida”: esta frase, que é atribuída ao filósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso, expressa a ideia da unidade fundamental dos opostos criada por este pensador. Neste sentido, vida e morte são faces de uma mesma moeda e não há como definir uma sem menção a outra. Em outras palavras, é a morte que nos ajuda a pensar e entender os possíveis sentidos da vida e, ao mesmo tempo, é a consciência que temos da finitude da vida que nos imputa as diversas percepções da morte…
Mas se a morte gera a vida, por que é comum nos assustarmos com ela? Simplesmente porque temos consciência de que queremos viver? Ou justamente porque temos consciência de que vamos morrer! A consciência do tempo e da nossa finitude diante do seu infinito parece ser a chave para este entendimento. Essa consciência pode ser desenvolvida pela moralidade ou intuitivamente, a partir das vivências. Na primeira, que tem como um dos pilares principais o pensamento religioso, diversas saídas de continuidade são apresentadas como forma de confortar o sentimento de impotência causado pela consciência da finitude que se materializa na morte. Na segunda, pode-se visualizar, dentre as várias possibilidades, à compreensão de que temos uma oportunidade única de viver: “Viver como se o instante retornasse eternamente”, como afirmava Nietzsche, ou seja, a consciência trágica como fonte de entendimento e da vontade de amor à vida. Ambas as formas de entendimento possuem, evidentemente, implicações e consequências bem distintas no que se refere à compreensão da unidade vida/morte: conforto e contenção na primeira; liberdade e potência na segunda. De toda maneira, a morte é uma estação inevitável e afeta ambas as perspectivas!
Embarcados na locomotiva da vida, queremos seguir em frente e encontrar satisfação (física, intelectual, psicológica) em cada estação pela qual passamos. Por isso, a morte entra para todas as afecções do pensamento (intelecto, emoções, imaginação) como diria o filósofo Baruch Espinosa, a partir das sensações experimentadas. Como o pensamento não é pura racionalidade, ou seja, é afetado pelas emoções, pela imaginação, pelo desejo, etc, a percepção da morte acaba causando algum desconforto para o ente que possui alguma consciência de si, embora limitada. O ser, que é, teme o não ser pelo sentimento de impotência contido em sua transformação, ou seja, a consciência da morte implica na forma como cada qual encara a vida…
Na locomotiva da sociedade moderna, somos partes de uma engrenagem que tende a funcionar de forma ininterrupta em um processo alucinante de transformação de matéria e energia. Dentro das hierarquias dessa sociedade, alguns comandam e tomam decisões, outros apenas cumprem as ordens determinadas pelos primeiros. Raras exceções, ambos seguem o fluxo sem parar muito para pensar na inteligibilidade e no sentido daquilo que estão fazendo: uns para retroalimentar o status quo presente e futuro, outros apenas para resistir às adversidades da estrada que lhes foi atribuída. A velocidade é tamanha que, em raros momentos, paramos em alguma estação para refletir com profundidade acerca do que estamos fazendo com nosso tempo finito.
Neste sentido, eventos como uma pandemia, enfermidade epidêmica amplamente disseminada, deveriam causar impactos profundos na relação do ser consigo mesmo e em suas interações com o mundo. A percepção do óbvio que hodiernamente não temos! Sim, é mesmo contraditório. Não perceber o óbvio é resultado da velocidade da nossa locomotiva! Ou conseguimos visualizar com profundidade uma paisagem em um metrô (agora não figurativo) a 300 km/hora? A situação de pandemia nos impõe a realidade da morte para que possamos pensar no sentido da vida. Poderíamos entender isso como uma estação edificada pelo tempo a fim de instruir-nos, pedagogicamente, às direções futuras da nossa locomotiva.
Se as coisas do mundo afetam o ente a ponto de interferir na construção das suas formas de pensamento, como diria Espinosa, então a percepção da realidade da morte expressa em fenômenos como a pandemia, poderia/deveria estimular reflexões e atitudes em relação à forma de encarar a vida. Se a orientação fosse a consciência trágica, como vista anteriormente, deveríamos viver a vida com intensidade e isso inclui as coisas que agradam e elevam o espirito (a arte, o conhecimento, o trabalho, o lazer, as amizades, a família, enfim, o que realmente importa); se a orientação fosse a moralidade do amor a Deus e ao próximo, pilar fundamental da religião cristã, por exemplo, deveríamos nos preocupar com a vida do próximo, inclusive daqueles que não conhecemos, diante da situação de ameaça à vida dos mesmos. Não sabemos qual dessas duas possibilidades está mais próxima, pois nos parece que ambas estão mais na garganta do que naquilo que nos move (a alma conforme Aristóteles).
Medidas como o isolamento social de alguns dias, como experimentamos, podem ser entendidas como uma pequena parada em uma estação do tempo histórico. Seria ela uma oportunidade suficiente para realinhar os trilhos da nossa locomotiva? Ou apenas uma breve parada para recarregar as energias e retomarmos o ritmo e o caminho anterior? Na primeira, o ritmo e o sentido da locomotiva seriam realinhados, isto é, poderíamos repensar valores e atitudes em relação à vida; na segunda, voltaríamos ao ritmo da velha locomotiva correndo alucinadamente em direção ao precipício. Gostaria muito de acreditar que nesta parada pudéssemos dizer, enquanto coletividade: “pare o mundo que eu quero descer”, como diria Raulzito. Mas a realidade parece ser bem mais pessimista do que qualquer forma de entusiasmo precoce e, talvez, a parada que fizemos nesta estação ainda seja insuficiente para mudar o ritmo e o sentido da nossa locomotiva.
Ao tempo, as respostas!