A invisível que ganhou notoriedade em tempos de pandemia? Uma breve história da agricultura urbana
Organizado por Cleber Bosetti – 16/07/2020
As situações de crise, sejam elas socioeconômicas ou de saúde pública, como é o caso da Covid-19, são momentos para se ampliar o olhar sobre o mundo. Não que isso deva ser feito somente nesses momentos, mas, por vezes, a desorganização do mundo é a alavanca que impulsiona sua reorganização. Um dos aspectos mais graves gerados pela crise de saúde pública/socioeconômica, causados pela Covid-19, diz respeito à condição de segurança alimentar da população. O problema do acesso aos alimentos é cotidiano para milhões de pessoas no mundo, mas isso, por vezes, é invisível para outros tantos milhões… Isso faz pensar que a organização do regime agroalimentar vigente no mundo, controlado por um pequeno grupo de corporações agroindustriais e financeiras, é ineficiente no objetivo de fornecer alimentos à população de um modo geral. Ademais, a preocupação com a qualidade desses alimentos oferecidos tem chamado à atenção de parcela da população. Diante disso, a agricultura urbana ganha visibilidade como uma ferramenta para amenizar tais problemas, bem como para satisfazer outras necessidades, percepções e motivações. Mas, afinal, o que vem a ser a agricultura urbana? Desde quando ela existe? Como pode ser feita? Qual seu papel na atualidade?
Para começo de conversa, o que é agricultura urbana? Há muitas definições sobre o que vem a ser agricultura urbana, dentre elas as concepções da Fundação das Nações Unidas para a Alimentação-FAO que a concebe como: “o cultivo de plantas e a criação de animais dentro e fora das cidades para fornecer alimentos frescos, gerar emprego, reciclar resíduos e fortalecer a resiliência das cidades às mudanças climáticas”; a integração territorial da agricultura (urbana, periurbana e rural) para promover a segurança alimentar e a sustentabilidade ambiental (FAO, 2012). A agricultura urbana também pode ser entendida como práticas de cultivo que estão em interação com o espaço urbano e periurbano, que se integram com a agricultura rural, e possui multifuncionalidades no tange aos seus objetivos (MOUGEOT, 2005). Assim, pode-se dizer que a agricultura urbana consiste em toda e qualquer prática de cultivo realizada nos mais diversos espaços da cidade e que serve para diversas finalidades, dentre elas a produção de alimentos, a segurança alimentar, a geração de renda, a sustentabilidade do ecossistema urbano e até mesmo a construção de espaços de sociabilidade e interação social.
Desde quando se pode falar em agricultura urbana? Por incrível que pareça a relação agricultura/cidade foi estabelecida desde o surgimento das primeiras cidades! As primeiras vilas que deram origem às cidades remontam ao período neolítico, época em que houve o desenvolvimento sistemático da agricultura e a edificação de uma maior divisão social do trabalho em termos de atividades econômicas, ou seja, além da economia da caça e coleta, sugiram profissões com algum grau de especialização como os agricultores, os comerciantes, os ferreiros, os carpinteiros, etc… Os habitantes dessas vilas, mesmo os que não faziam da agricultura sua principal atividade econômica, plantavam em seus quintais… Isso, nos termos atuais, pode ser considerado agricultura urbana!
Nas civilizações antigas, quando surgiram grandes cidades como Constantinopla, Roma, as cidades mesopotâmicas, entre tantas outras, o abastecimento alimentar das mesmas era predominantemente externo, ou seja, provinha das regiões rurais e dos territórios conquistados. Apesar disso, havia espaços de produção de alimentos, principalmente nas áreas periurbanas, que cumpriam um papel importantíssimo em termos de abastecimento alimentar. As Quintas Romanas, pequenos lotes de terras situados nas áreas periurbanas, eram um exemplo de uma agricultura integrada ao espaço urbano, pois se conectavam diretamente com o comércio local da cidade fornecendo alimentos à população urbana. Do mesmo modo, na época Medieval, especialmente na Baixa Idade Média, as feiras movimentavam pessoas e produtos que vinham tanto de locais longínquos quanto de espaços periurbanos. Nestes últimos tratava-se da produção de alimentos situadas imediatamente após os muros da cidade, bem como da criação de animais que transitavam entre um espaço e outro. Além disso, em ambos os períodos, o cultivo de plantas alimentícias e chás sempre foi praticado pelos habitantes das cidades.
Foi a partir da Revolução industrial, a qual amplificou a divisão social do trabalho existente, que o afastamento socioeconômico e cognitivo da agricultura em relação à cidade se tornou marcante nas relações de produção e no imaginário social. A Revolução industrial impulsionou o deslocamento dos camponeses das terras por eles ocupadas levando-os para as cidades. Não foi apenas um movimento demográfico que se constituiu nesse momento, mas um deslocamento socioprodutivo e cognitivo da representação campo/cidade, ou seja, a construção social de que as pessoas que moram nas cidades trabalham na indústria e no setor de serviços e as pessoas que moram no espaço rural produzem alimentos. Essa cisão construiu a invisibilidade da agricultura urbana no imaginário social, mesmo sabendo que aqui ou acolá sempre houveram pessoas nas cidades plantando e cultivando alguma coisa em seus quintais!
As crises em termos de segurança alimentar acompanharam a trajetória histórica da humanidade. Seja por problemas climáticos, guerras, doenças nas plantações, crises econômicas ou de saúde pública. Na época moderna, pós-revolução industrial, as crises de segurança alimentar passaram a afetar principalmente os trabalhadores urbanos que, devido aos baixos salários e ao desemprego estrutural invariavelmente presente, periodicamente sofrem com tal problema. Diante disso, durante a época de consolidação da Revolução Industrial nos séculos XVIII e XIX, em países como a Alemanha e a Inglaterra, houveram algumas iniciativas para melhorar as condições de vida da população operária urbana que, devido aos baixos salários, a alimentação deficitária e aos ambientes insalubres dos bairros operários, adoecia constantemente. Dentre essas iniciativas podem se destacar as hortas operárias e os jardins terapêuticos criados em cidades alemãs para amenizar o sofrimento da classe operária urbana (LIMA, 2015). Nota-se que a concentração demográfica nas cidades motivada pela amplificação da divisão do trabalho, carregou consigo o problema da segurança alimentar para parte dessa população. Portanto, as práticas da agricultura urbana, mesmo antes de sua denominação, visavam amenizar dois grandes problemas que a cidades modernas despejavam nos ombros dos mais pobres: a alimentação deficitária em termos nutritivos e a insalubridade do espaço urbano de habitação.
Entretanto, foi a partir da segunda metade do século XX que a agricultura urbana passou a ganhar visibilidade e, coincidentemente, devido a novos eventos de crise de abastecimento. Após a Segunda Guerra Mundial, quando muitas cidades ficaram devastadas pela guerra e os empregos sumiram em decorrência da desorganização econômica, a ocupação de espaços urbanos ociosos para o cultivo de plantas alimentícias voltou a ser uma prática recorrente por parte dos trabalhadores urbanos. Nessa época, em países como França e Alemanha, multiplicaram-se os jardins coletivos voltados, primeiramente, para a produção de alimentos e, posteriormente, para fins multifuncionais como a do contato com a natureza e a própria sociabilidade em termos de relações sociais.
Mas foi no final do século XX e início do século XXI que a agricultura urbana recebeu essa nomenclatura e passou a ser reivindicada com maior frequência devido à persistência da insegurança alimentar para parte da população urbana e da crise socioambiental contemporânea, especialmente nas grandes cidades. Com isso, multiplicaram-se os agentes promotores, bem como o escopo de funcionalidade da agricultura urbana nos territórios em que ela é praticada.
Importante ressaltar que neste contexto vive-se uma nova fase da amplificação da divisão do trabalho, na medida em que o desenvolvimento tecnológico, especialmente das tecnologias da informação, modifica a natureza dos postos de trabalho e deixam parte da população vulnerável a essas mudanças, pois elas são mais rápidas do que as possibilidades/capacidades de adaptação das pessoas. Ao se visualizar um cenário de desemprego estrutural, trabalho precarizado e informal, realidade comum nos países subdesenvolvidos, a agricultura urbana torna-se uma possibilidade para amenizar tais problemas e ser, inclusive, uma forma de se obter sustento e renda.
Afinal, para que serve a agricultura urbana no século XXI? Para muitas coisas! Se existe uma definição de utilidade para a agricultura urbana atualmente, tal definição se caracteriza pela multifuncionalidade. Dentre as múltiplas funções que ela desempenha podem ser citadas:
- A produção de alimentos: tal como em outras épocas, a agricultura urbana e periurbana cumpre um papel importante no abastecimento alimentar das cidades. Embora não seja capaz de resolver o problema do abastecimento alimentar urbano, afinal, há uma desproporcionalidade causada pela densidade demográfica, isto é, pouco espaço produtivo para muita gente que necessita de alimento, a agricultura urbana pode ajudar a melhorar as condições de segurança alimentar de muitas pessoas;
- Amenizar os impactos das mudanças climáticas: a construção de espaços verdes nas cidades é uma das maneiras de se criar microclimas que ajudam a amenizar os extremos de calor recorrentes na atualidade e cuja expressão é mais intensa nas cidades;
- Contato com a natureza: a vida urbana, especialmente nas grandes cidades, tornou a relação do ser humana com a natureza mais distante. Este afastamento pode ser minimizado na medida em que espaços verdes são construídos e permitem o contato das pessoas com eles reatando a intimidade do ser humano com a natureza;
- Sociabilidade: a construção de ambientes de cultivo como hortas ou jardins comunitários é também uma forma de proporcionar a sociabilidade físico-social, na medida em que, na atualidade, as relações sociais mediadas pelas tecnologias da informação têm ocupado a maior parte do tempo das mesmas. Espaços de socialização comunitária em contato com a natureza são apreciados por muitas pessoas e, neste sentido, a agricultura urbana ajuda a proporcionar esses reencontros;
- Cultura: a (re)descoberta da agricultura pode ser concebida como uma forma de identidade cultural, principalmente para aqueles que possuem laços identitários com o rural ou que, simplesmente, buscam em atividades práticas uma forma de ocupar parte de seu tempo na rítmica da natureza, escapando assim, momentaneamente, da artificialização dos ritmos urbanos.
- Enfim, a agricultura urbana serve a muitos gostos!
Como pode ser feita? De muitas maneiras! A agricultura urbana pode ter como concepção as perspectivas orgânico/agroecológica de produção ou a agricultura convencional. Na primeira busca-se uma maior integração do ecossistema e um reaproveitamento otimizado dos recursos disponíveis; na segunda há uma dependência maior de recursos externos, especialmente de nutrientes e, apesar de não ser orgânica/agroecológica, em geral, não faz o uso de agrotóxicos. Quanto aos objetivos, a agricultura urbana pode ser concebida como uma estratégia para complementar o acesso aos alimentos em uma lógica de autoprodução; pode ser conduzida em uma lógica de escala para a venda, como acontece com os cultivos urbanos hidropônicos ou ultratecnificados (lavouras Japonesas robotizadas dentro de prédios); além disso, a agricultura urbana pode ser concebida com objetivos de aumentar os espaços verdes nas cidades, seja na forma de jardins comunitários que criam um ambiente de harmonização social com a natureza ou em conceitos arquitetônicos como os do Bosco de Milano, edifícios concebidos como uma floresta vertical. Como se vê, os arranjos são diversos em termos de objetivos e as práticas seguem essa mesma lógica. A agricultura urbana pode ser feita em canteiros, vasos horizontais, vasos verticais, estufas hidropônicas, nas sacadas dos prédios, no quintal das casas, em espaços públicos, em empresas, enfim, onde a criatividade humana for acionada!
Quais são os desafios para que a agricultura urbana possa cumprir suas múltiplas funções? As dificuldades não são poucas e os caminhos da agricultura urbana dependem muito de seu reconhecimento dentro das políticas territoriais, ambientais e de segurança alimentar. Dentre as principais dificuldades, principalmente nos países subdesenvolvidos estão:
- Construção de políticas púbicas a nível local que contemplem a agricultura urbana como um mecanismo de promoção da sustentabilidade das cidades. Nisso pode ser incluído desde a reciclagem de resíduos orgânicos e sua transformação em adubo para produção de alimentos às políticas de incentivo a produção e distribuição de alimentos em territórios urbanos;
- Estudos técnicos para avaliar a segurança sanitária do solo e dos alimentos produzidos em ambientes que, por estarem muitos expostos às atividades humanas, encontram-se degradados e poluídos, aspectos que podem comprometer a qualidade dos alimentos;
- Assistência técnica especializada para orientar os processos de produção tendo em vista a boa sanidade dos produtos e a otimização dos recursos; d) Políticas e ações educativas que mobilizem a população, especialmente a que habita as periferias e encontra maior vulnerabilidade em termos de segurança alimentar.
Alguma conclusão? Vamos estudar mais sobre o tema, aperfeiçoar os conhecimentos técnicos para melhorar as condições de produção, mobilizar pessoas e, por fim, arregaçar as mangas e mãos a obra!
Referências
FAO. Criar cidades mais verdes. Italia : FAO, 2012.
JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2011.
LIMA, A. B. O modelo de agricultura urbana da Alemanha: a importância ambiental dos Kleingärten. In.: Anais… Simpósio Nacional de História, 38. Florianópolis/Santa Catarina, 2015.
MACHADO. A.C; MACHADO, C. T. Agricultura urbana. Série Documentos, N.48. Brasília/DF : Embrapa Cerrados, 2002.
MOUGEOT. J.A. Urban agriculture: definition, presence, potentials and risks. 2005.
VEOLIA INSTITUTE. Urban agriculture: another way to feed cities. Facts Reports, N.20, 2019.
WILLIANS, R. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
Sobre o autor:
Cleber Bosetti é agricultor, membro do Grupo de Pesquisa ASAM e professor de Extensão Rural, Desenvolvimento Rural e Sistema Agroalimentares no CCR/UFSC.